3 de maio de 2010

Nota oficial e postura de repórter

A matéria sobre as mortes de bebês na Maternidade Estadual Mãe Luzia, em Macapá, produzida e exibida pelo Fantástico no último domingo, não foi um material excepcional em termos jornalísticos. Uma matéria redonda como uma bola de futebol – como se diz no jargão jornalístico quando temos todos os elementos de uma boa história de jornal: gancho que não se deve deixar passar, boas sonoras de personagens que humanizam a matéria, declarações de autoridades, tomada do prédio da Secretaria de Saúde (fachada feia né), tomada de uma rua do centro como amostra da precariedade urbana e gravação escondida usando caneta que filma.

Enfim, nada que qualquer emissora de televisão de Macapá não tenha condições técnicas para fazer, desde que escale um repórter pra ficar só com esta pauta (acho que dois dias são suficientes) após um trabalho bom de produção (levantar endereços das mães sofridas e agendar com todos os personagens envolvidos), deixe a preguiça de lado e escreva um bom texto e enfim, caprichar na edição. O problema é que existem a pressão e a opressão econômica e política (partidária) para que as TVs não façam jornalismo e sim meramente divulgação, achincalhes e sejam porta-vozes eletrônicos das assessorias do Governo, restando para os observadores mais atentos a impressão equivocada de que todos os jornalistas destas emissoras são incompetentes e insensíveis. Esta é uma discussão, a outra é o comportamento da imprensa local pós-exibição da reportagem, com relação à reação da Secretaria Estadual de Saúde que enviou uma nota de esclarecimento sobre os fatos relatados na matéria.

Primeiro, a expressão esclarecer só cabe quando se trata de explicar algo que não foi relatado de forma correta, e que, por isso, pode dar margem para interpretações dúbias, dúvidas ou informações desencontradas ou mesmo incorretas. O que não é o caso, porque a nota não nega nada do que está escrito no texto da reportagem do Fantástico e, principalmente, não desmente que exista apenas um respirador para os bebezinhos, pasme. Então, logo não é uma nota de esclarecimento, porque não “explica” nem rebate nada. Lógico que não, até porque se tivesse alguma explicação, teria sido dada à própria equipe do Fantástico e se fosse incrivelmente verdadeira e convincente derrubaria a pauta da emissora do Jardim Botânico.

Para um repórter, o que deveria interessar (ao que eu ainda lembre, repórter quer mesmo é entrevistar, checar e comparar documentos, ouvir personagens, e principalmente reportar ao seu distinto público o que sabe, ouve, ver, sente e percebe) é confrontar com os responsáveis maiores pela gestão da saúde (Governador e Secretário de Saúde) todas as informações da matéria exibida domingo e que a nota servisse apenas de ponto de partida para uma matéria e não para a repetição pura e simples de uma nota.

Perguntas simples de um (a) repórter, que não precisam ser feitas de forma raivosa:
Governador (ou Secretário), por que a Maternidade tem apenas um respirador? O que aconteceu com os outros respiradores? Quanto custa um? Já foi providenciada a compra de novos ou reparos dos antigos? Quais os custos? Faz anos que essa situação é denunciada, por que o senhor não tomou providências?O senhor assistiu a reportagem, onde? A nota fala em convênio com a Prefeitura para aumentar numero de leitos, mas a situação que vimos na reportagem é urgente, quais providencias o senhor já tomou diante da urgência (se ele não tiver realmente o que dizer nesse caso, é problema dele, não do repórter, a quem cabe apenas reportar na matéria que o entrevistado não soube o que falar). Cada resposta pode desdobrar em outras perguntas que podem e devem ser feitas, sem qualquer constrangimento ou acanhamento, a qualquer gestor que administra recursos públicos e que tem mandato eletivo e temporário, portanto tem salário e várias mordomias custeadas pelo erário.

Com essa história toda entrelaçando saúde e comunicação, lembrei do doutor Geraldo Camilo, médico que ergueu um hospital na pequena Guarabira (PB). Há uns 15 anos ele comentou que seus funcionários jamais deveriam informar que “este mês tivemos apenas 2% de óbitos”. E sabe por que? “Porque para nós é um percentual pequeno, a ser festejado. Mas por outro lado, para as famílias dos mortos a perda é 100%, é total”. E sempre recomendava que falassem nas entrevistas que “este mês infelizmente perdemos 2% em óbitos”. Lembrei demais disso quando ouvi a sonora do diretor da Maternidade Mãe Luzia enaltecendo o fato de que estaríamos abaixo da média nacional em número de bebezinhos mortos na maternidade.

4 comentários:

myriandauer@uol.com.br disse...

Muito bom o post, muito bem escrito e foi ao fundo da questão.Que nota de esclarecimento o que? Parabéns moça!

Unknown disse...

Vejo isso como uma aula de jornalismo. Muito bom.

Ernâni Motta disse...

Se eu fosse professor, em alguma escola de Comunicação, em Macapá, recomendaria esse texto aos meus alunos. E cobraria deles uma redação sobre a que entendimento chegaram. Por fim, faria um painel para discutirmos, em conjunto, o que foi escrito e a interpretação de cada um. Preciso dizer mais? Parabéns, pela aula. Serviu-me também.
Beijos.

Anônimo disse...

ótimo! bem escrito! lendo estes paragrafos, num deles fala em " erario publico", alguns gestores publicos vivem ricamente humilham quem ja esta humilhado e estabelecendo um reino do inferno! Nos cabe chorar, orar, enxugar nossas lagrimas e dos que sofrem, levanta-mos todos e marcharmos em guerra contra esses inimigos! e eles escolherao se querem se expulsos com a caneta ou com armas!